Friday, October 27, 2006

Caso prático


A - Eu grito por ti!
B - Eu espero por ti!
E no meio, quem vive, senão a dúvida?
A dúvida, além de separar tantas almas gémeas, faz chorar, faz sempre chorar. Mas também traz algo mais. E se no que falta do agora imaginarmos um tempo - quando? - em que os problemas não existiam, mas tão somente a existência das coisas, perene, eterna, as cores a espreguiçarem-se de manhã. As cores, além da escuridão, são a única constante que nos acompanham, e que cruzam o dia e a noite, uma após outra, dia após dia, noite após noite, até se soltarem total e completamente para fora de nós - para a batalha. O Sol gigante levanta o dia, com toda a sua força guerreia a noite para constatar no horizonte, mais uma vez, o milagre das cores. O calor das cores e o frio da escuridão.
Aqui em baixo, no resto do mero mundo, vivem as personagens que não conseguem ver além do dia-a-dia, das necessidades e deveres, dos quereres e dos não-teres. O Sol, o dia nasce com toda a sua batalha ancestral. Havendo ou não lágrima, tristeza, o dia tem de recorrer da noite, injutiçado ou não.
O mundo inteiro é a roda-viva que vê o mundo girar reflectido no Sol brilhante.
De noite, ou quando a noite se aproxima, o que melhor do que contemplar a lua, que de vez em quando descobre cores únicas, amarelos lindos que não encontram em palavras ou saudades sua semelhante.
Na cabana, ao fundo, mora a solidão sozinha, aquecida pela quietude da noite, que roubou do Sol distante, um azul impossivelmente tranquilo, ou era roxo quando o olhei de novo.
Na minha cabana, que agora vejo, no meio da mais triste e silenciosa montanha, que chorava pela manhã, via em sonhos concertos de Mozart abrirem-me não os olhos, mas as portas em volta, na mente, que os fechavam.
O fumo do cigarro que fumava deixava-me estupefacto com o silêncio tranquilo que no meio de tantos gritos eu procurava.
Deitava-me. Debruçava-me sobre aquela solidão recém-descoberta que me trazia acelerada todas as verdades do mundo, num constante vai-vem de este mundo a outra solidão, que numa cascata longínqua no Rio das Amazónias, na Floresta das Amazónias, no Pântano dos Amazónias, me esperava.
O meu grito calava o mundo e aí conseguia de novo ouvir o fluir da cascata - no fundo de tantas brincadeiras, era o que aliás existia, enfim existia, a tudo resistia, num choro claro que ameaçava a toda a hora tornar-se no meio da pedra um esconderijo donde não houvesse mais saída.
Djavan, Caetano, Chico cantavam a esta pedra, como a uma cor líquida que desse vida aos olhos, tão cansados de tanta cegueira.
Noutro lado, o longínquo medo não sabia onde mais se esconder de tanta dúvida. Não conseguia negar mais a existência daquela prova que jamais permitiria ao seu receio enfrentar com os seus olhos o novo mundo que nascia duma música há tanto tempo atrás cantada.
Esta música, inventada primeiramente numa gruta vazia senão por uma menina humana, seus longos cabelos descaindo sobre a solidão em flor dos seus ombros, esta música tinha não só atravessado anos-luz de distância mas também anos-luz de solidão para de novo chegar a ela, subitamente desperta dentro de si mesma, surpresa por ver quão rápido a sua luz não só queria, mas ia fazendo, transportava-se sem mentira, atravessava a ponte que não existia senão dum coração ao outro, no mais completo silêncio mas na mais brusca revelação.
A luz cruzando para o outro lado, assustada pelo mundo novo, lutava contra os rochedos de solidão que lhe caíam perigosamente em cima, descuidados de terem existido.
A luz, entretanto, crescia, naquele dissipar interno e externo de dúvidas, numa clareza externa de ideias que rompia duma vez por todas com a culpa - origem de todos os problemas entre os seres humanos - e que se concentrava cada vez mais numa solidão que, não sendo única, se juntava à outra para romper também com o mundo que delas se distanciava. Como se catapultassem para uma nova dimensão, entre o céu e a terra, no espaço solto imenso, entre o sonho acordado, nítido, sensorial, íntimo e pleno de significado, e a realidade, alerta, brusca, nunca suficiente, nunca perceptível ou possível sem esta dimensão, que acabava por afectar a vida como a lua afecta as marés, e como o barco, sólido de madeira castanha, caminha pelo ruminar das ondas num baloiçar estonteante.

3 comments:

Dv said...

A viagem que percorri ao ler-te foi assombrosamente visual.

Que culpa há na solidão da ponte entre a luz e a escuridão?

José Maria said...

Entre a luz e a escuridão, há um medo ressurgente sempre a evitar, mas que muitas vezes temos de fintar. Essa ponte não é mais do que o acordar duma noção de que não vivemos sozinhos deste mundo, mas que a própria ponte nos pertence numa existência mais abrangente, e sólida, e triste, e real.
Um abraço, José

Frances said...

que lindo!! nao podia ser melhor! fiquei ... tu entendes como fiquei. que prazer ler te! Besos